Amigos peço com a devida vênia licença, para postar um artigo que escrevi sobre este momento atual que vivemos, sob a égide do Direito Constitucional comparado.
Nunca imaginaríamos, que uma crise desencadeada no oriente, poderia cruzar os oceanos e impactar potências econômicas levando milhões a óbito e ao isolamento social. a Itália figurou como o epicentro da pandemia, ao qual demorou para tomar medidas de segurança mais duras, que visassem a segurança de todos, ao passo que tristemente o sistema de saúde italiano não aguentou as altas demandas, e o colapso veio tomando vidas e aumentando a carga nos hospitais público/privado italianos. Com o quadro pandêmico cruzando mares e assolando o continente europeu era iminente que tal situação viria a chegar em continente sul americano, se confirmando tal catastrófica realidade em 25 de fevereiro de 2020, com o primeiro caso confirmado, ao caso, um homem de 61 anos de idade[1], que foi para uma viagem à Itália e quando retornou ao Brasil, voltou já infectado; desde então o quadro de agravamento da doença se agravou, com a necessidade da criação de hospitais de campanha em diversos estados da federação como em São Paulo por ex; nas regiões do Pacaembu e o complexo do Anhembi na Zona Norte da cidade.
A quarentena se prolongou e junto com o encarceramento voluntário, e o apelo das autoridades vieram medidas passíveis de questionamento como a localização em tempo real de celulares via geolocalização, que foi usada pelo governo do estado de são Paulo, como forma de monitoramento das pessoas que aderiram a quarentena mas que flerta com a inconstitucionalidade ao que tange o direito a privacidade sendo uma das garantias do art. 5 da CF/88 as autoridades que propuseram tal medida garantiam que a privacidade estaria resguardada e que apenas usariam os dados para terem uma melhor noção sobre a taxa de adesão a quarentena no estado, interessante é o posicionamento do ex-presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Ivan Sartori [2]que em artigo publicado traz uma opinião sobre estas medidas e seu grau de compatibilidade com a Constituição vejamos:
“É claro que a pandemia é um problema sério e tem que ser combatida com rigor. Entretanto, apesar da urgência da situação, não se pode conferir a nenhum governante a prerrogativa de ditar a Constituição de forma arbitrária e personalista, ignorando preceitos consagrados, para impor medidas arbitrárias e truculentas.
O sigilo de dados telefônicos é previsto no inciso XII, do art. 5º da Constituição Federal, sucedendo que a geolocalização mencionada contraria esse direito fundamental do cidadão, mesmo porque o dispositivo superior não se refere apenas a conversas, mas, aos próprios dados, indistintamente.
Não bastasse isso, passou o governador a brandir o aparato policial para ameaçar de prisão todo cidadão paulistano que estiver circulando pelas ruas.
Lógico que essa postura também denota alta arbitrariedade, na medida em que o inciso XV, do mesmo art. 5º , confere a todos o direito de locomoção pelo território nacional, em tempo de paz.
Trata-se de duas cláusulas pétreas que não podem ser alteradas ou suspensas nem mesmo por Emenda à Constituição.
Essas disposições, a traduzirem garantias individuais básicas, somente podem sofrer restrições quando decretados os chamados estado de defesa (dados telefônicos) e estado de sítio (ambas as garantias), a teor dos arts. 136/139 da Lei Maior.
Como não houve decretos tais, da alçada Presidente da República, com aprovação do Congresso Nacional, não tem como negar que o governador age de forma ditatorial.
Tal momento que vivenciamos também nos propôs as mais abjetas proposições legislativas que desafiam a logicidade como o decreto estadual nº 18.942 do Estado do Piauí[3] que praticamente autoriza a desapropriação de propriedade privada por ex; vejamos alguns artigos do decreto.
Art. 2º Ficam autorizadas:
§ 1 º As autoridades administrativas e os agentes de defesa civil, diretamente
responsáveis pelas ações de resposta ao desastre, em caso de risco iminente, são
autorizados a:
- penetrar nas casas para prestar socorro ou para determinar a pronta
evacuação; - usar de propriedade particular, em caso de iminente perigo público,
assegurado ao proprietário indenização ulterior, se houver dano. - § 2º Será responsabilizado o agente de defesa civil ou autoridade administrativa que se omitir de suas obrigações, relacionadas com a segurança global da população ou que se exceder no cumprimento dos seus deveres.
- Art. 3º Sempre que possível as propriedades particulares comprovadamente localizadas em áreas de risco intensificado de desastre serão trocadas por outras situadas em áreas seguras, e o processo de desmontagem e de reconstrução das edificações, em locais seguros, contará em apoio da comunidade.
- Parágrafo único. Em caso de desapropriação, deverão ser consideradas a depreciação e desvalorização que ocorrem em propriedades localizadas em áreas inseguras.
O grau de incompatibilidade com a lei maior, já começa a partir do inciso I do decreto que autoriza agentes públicos penetrarem na propriedade privada, sem consentimento do morador, violando o art. 5 inciso XI da CF/88 que exige o requisito do consentimento do morador, bem como o encargo demasiadamente posto as costas do agente público no que tange a expressão “segurança global” contida no §2 do artigo fugindo das disposições do art. 37 da CF/88. Terminando a absurda criação legislativa com o art. 3º que propõe que em caso da propriedade privada ser expropriada, será trocada por outra, sem nenhum critério especifico, ou seja, a pessoa irá para onde a administração quiser sem levar em consideração valores venais do imóvel expropriado, área por ex:.
Atualmente começaram a aparecer decisões atinentes ao momento atual de COVID-19 e de como o judiciário brasileiro, e alemão está enxergando meios, para lidar e decidir questões que versem sobre o tema nos mais diversos frontes, conforme veremos a seguir.
O tribunal distrital de Colônia na Alemanha, decidiu que o auxílio emergencial é impenhorável, ao caso criando meios de enfrentamento e auxílio a população o parlamento alemão aprovou lei que concede um auxílio a profissionais liberais e pequenas empresas, cujo valores ficam entre 9 mil a 15 mil euros. Na mesma linha, no brasil foi aprovada a lei 13.982/2020 que criou o auxílio emergencial concedido a trabalhadores informais, desempregados, microempreendedores individuais, e contribuintes individuais do INSS, no valor de R$ 600,00 pagos em três parcelas mensais.
A decisão do tribunal distrital em Colônia, se referia a um pedido que um consultor tributário ajuizou no tribunal pleiteando a penhora deste auxílio para quitar dívidas referente a serviços de consultoria prestados e não pagos. O executado possuía débitos em aberto, com o consultor datados dos anos de 2014-2015.
Em 02.04.2020, o consultor requereu a penhora de 9 mil euros referente a parte do valor da dívida, em sua defesa o executado disse estar com suas atividades paralisadas, em razão da pandemia e que o valor penhorado era indispensável a sua subsistência, não podendo assim honrar o débito.
O credor tentou alegar também a existência de um automóvel de razoável valor, que poderia facilmente satisfazer o débito, mas sem sucesso o juiz da comarca Bergisch Gladbach deu razão ao devedor trata-se do processo, LG Köln Az. 39 T 57/20, julgado em 23.4.2020[4]
Ao caso o juiz decidiu que o pedido de penhora não encontrava vinculação específica enquanto credor, pois o auxílio fazia frente a custeio operacional, ou a própria subsistência do executado não podendo satisfazer débitos contraídos anteriormente pois se a penhora recaísse em cima do auxílio concedido pelo parlamento, iria contra a vontade do legislador, e contra o fim da norma em si, tendo o condão extremamente injusto, sendo que valor dado pelo governo ao executado seria estritamente para fazer frente ao atual momento de pandemia.
Está é uma das decisões, que serve como parâmetro para reflexão de pedidos de penhora e execução de valores recebidos a título de auxílio-emergencial. como a do Juiz de direito da 2º Vara de Família e Sucessões de São José do Rio Preto, Ronaldo Guaranha[5], que penhorou 40% do auxílio-emergencial que foi creditado em conta corrente do executado senão vejamos.
Na ação o juiz verificou que o valor do débito, correspondia a mais de 50% do salário do pai montante vedado pelo CPC/15 em seu art. 529 §3.
Na ação o magistrado verificou, que o valor da pensão devido era de 51,52% do salário mínimo nacional vigente, respeitando assim o limite legal e sendo razoável o constrição do crédito exequendo.
Neste momento de crise e atritos advindos do executivo, com os demais poderes, salutar é a lição de Alexandre de Moraes[6] que nos define o conceito de Jurisdição Constitucional como:
“Segundo Alexandre de Moraes, a idéia de jurisdição constitucional, ou seja, de proteção efetiva das normas constitucionais, surgiu da necessidade de se romper com um modelo consagrado na França, onde o Parlamento tinha sempre a última palavra sobre as leis. Os Estados Unidos foram o primeiro país a colocar o sistema em prática, após a célebre decisão no caso Marbury versus Madison.
Na ocasião, a Suprema Corte norte-americana decidiu que, embora o Judiciário não tivesse características legislativas, era o Poder competente para invalidar lei considerada inconstitucional. A decisão, considerada um modelo para todos os países, foi relatada pelo juiz Marshall em fevereiro de 1803.
O secretário da Justiça de São Paulo ressaltou a importância da jurisdição constitucional ao lembrar o que aconteceu na Alemanha Nazista. Segundo ele, a Constituição da República de Weimar, no seu conjunto, garantia os direitos fundamentais. Mas em 1926, o Parlamento alemão autorizou ao Kaiser legislar, o que permitiu a mudança do regime democrático para o nazista. O palestrante destacou o fato como um „triste exemplo histórico que mostra a necessidade de um controle ”.
Diante de todo o exposto, devemos nos propor a seguinte reflexão, quais serão os caminhos que a Jurisdição Constitucional, e a salva-guarda das respectivas Constituições irão tomar; o coronavírus como doença e como realidade, que assolou países e continentes como um todo. Foi senão um dos maiores desafios do novo século, e em realidades completamente distintas, no Brasil doenças como a malária e a gripe aviária/suína, que assolaram agentes públicos no século passado e novo século, exigiram pulso firme de seus representantes eleitos e respostas ao enfrentamento de tais doenças tendo êxito em ambos os casos. porém a realidade nos mostrou que com o Coronavírus doença pandêmica, esta e surgida num contexto contemporâneo completamente distinto, acabou se mostrando que tais respostas ao enfrentamento da doença deveriam vir de forma conjunta fosse com o apoio governamental e da ciência alinhados em uma espécie de denominador comum, algo dificilmente visto na américa do sul e nos presidentes de alguns países como Brasil e Argentina, que pregam políticas de não isolamento social, e volta a normalidade quando sabemos que o inimigo é visível e terrivelmente mortal e enquanto nos vizinhos argentinos políticas de enfrentamento a doença como o denominado “Lockdown” que se traduz num fechamento completo de todas as atividades e comércios não essenciais, apresenta êxito tendo um dos menores números nos casos de letalidade da doença, tendo se estendido as medidas restritivas até o dia 7 de junho de 2020 em território argentino. Agora no brasil algumas medidas mais restritivas começam a ser discutidas em nível estadual, e em nível federal sem nenhuma sinalização até o momento pois não há consenso entre o líder do executivo com governadores e prefeitos, a preocupação se funda mais em agendas próprias do que na coletividade o que pode ser mais letal que a própria doença em si, pois certamente refletirá nas urnas, em 2022. Tendo assimilado este contexto atual podemos perceber, a cintilante e atenta jurisdição constitucional tanto por parte do Supremo Tribunal Federal que mesmo sob forte ataque de membros do executivo, se mantem forte e estabelece parâmetros. como a decisão referendada na medida cautelar da ADI 6341, que atestou a competência concorrentes de governadores e prefeitos para decidir políticas de enfrentamento a doença e a do Tribunal Constitucional Federal Alemão, que decidiu em não dar seguimento a reclamação de Beate Bahner advogada alemã, e uma espécie de heroína de negacionistas a doença que defendia em seu website que a doença era uma mera “gripezinha” e que medidas de distanciamento social impostas pelo governo alemão, eram flagrantemente inconstitucionais tendo chegado a mais alta instância jurídica alemã visando suspender as regulamentações impostas por alguns estados ao controle da pandemia que foram sumariamente rejeitada pelo tribunal constitucional; em suma, é primordial conhecermos o contexto atual, para podermos avançar na historicidade.
CONJUR. Aula Magna Alexandre de Moraes fala sobre jurisdição constitucional em TV. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2004-mar-05/alexandre_moraes_jurisdicao_constitucional>. Acesso em 20.mai.2020
Diário de S. Paulo. Ivan Sartori: Coronavírus x arbitrariedade. Disponível em: <https://spdiario.com.br/ivan-sartori-coronavirus-x-arbitrariedade/>. Acesso em 06.maio.2020.
Governo do Estado. Diário Oficial do Estado Piauí. <http://www.diariooficial.pi.gov.br/diario/202004/DIARIO16_8538df8475.pdf>. acesso em 19.mai.2020.
Jusbrasil. Juiz autoriza penhora de 40% do auxílio-emergencial para o pagamento de pensão alimentícia. <https://edicelianunes.jusbrasil.com.br/noticias/837257443/juiz-autoriza-penhora-de-40-do-auxilio-emergencial-para-o-pagamento-de-pensao-alimenticia>. Acesso em 19.mai.2020.
Landgericht Koln pressestelle. <https://www.lg-koeln.nrw.de/behoerde/040_presse/zt_presse/pressemitteilungen/PM2020-10-Corona-Soforthilfe.pdf>. acesso em 19.mai.2020.